Há duas tendências diante do poder da mídia. Uma que insiste na sua força persuasiva, manipuladora, quase avassaladora, na formação da opinião pública, na propaganda das mercadorias, na criação dos desejos. Outra, pelo contrário, sem negar tal realidade, acentua antes a autonomia interpretativa do sujeito receptor de bens e produtos culturais. Por aí anda o A. desta obra, ao analisar a mídia sob a ótica das formas de interação que ela cria entre os indivíduos.
O A. é professor de sociologia na Universidade de Cambridge e membro do Jesus College. Ele estuda o impacto do poder simbólico dos meios de comunicação de massa na organização social e suas conseqüências para o mundo em que vivemos. Examina a natureza de tais meios, suas transformações, a indústria da comunicação e as suas tendências mais recentes em interconexão com as transformações institucionais e com uma série de outros processos de desenvolvimento, que, considerados na sua totalidade, chamamos de Modernidade. Vê, portanto, esses meios em íntima ligação com o surgimento das sociedades modernas. Sem entendê-los, não lhes compreendemos as características institucionais e as condições de vida criadas por ela. Em muitos estudos dos teóricos sociais a mídia esteve ausente, talvez por julgá-la como influência na esfera superficial da vida. Ficaram presos aos processos de racionalização e secularização das sociedades modernas, segundo as análises de autores clássicos da sociologia e filosofia, esquecendo a influência dos meios de comunicação. É uma leitura desde a grande narrativa do iluminismo.
O A. não segue essa trilha. Estuda o lento processo da expansão das redes de comunicação, o fluxo de informação desde os inícios da imprensa até sua globalização dos últimos séculos e como tudo isto se entrelaça com as outras formas de poder – econômico, político e militar – e é usado pelos atores individuais e coletivos na busca de seus objetivos. As conseqüências do desenvolvimento das etapas da comunicação são de longo alcance.
O impacto da mídia não deixa a comunicação entre as pessoas inalterada, antes cria relações sociais e novas maneiras de relacionamento do indivíduo com os outros e consigo.
No primeiro capítulo, elabora os fundamentos de um marco referencial teórico mais amplo dentro do qual analisa a natureza dos meios de comunicação. Constrói uma teoria social da mídia. Para tal, examina os contextos sociais dentro dos quais se processa toda comunicação e em referência aos quais ela se entende. Todas as sociedades se ocuparam da produção, do armazenamento e da circulação de informação e conteúdo simbólico desde tempos imemoriais até os dias de hoje. Mas a partir da invenção da imprensa até nossos dias as instituições de comunicação sofreram significativas transformações. O A. analisa os contornos dessa transformação. Não se pode esquecer a irredutível dimensão simbólica da mídia nem se deve encará-la somente sob o aspecto técnico, embora importante. Os seres humanos fabricam teias de significação para si mesmos. A comunicação midiática é sempre contextualizada. O A. reflete sobre o poder simbólico na sua relação com os outros poderes: econômico, político e coercitivo. Trata-se de uma atividade social distinta que envolve produção, transmissão e recepção de formas simbólicas e implica também a utilização de recursos de vários tipos. Usa-se a expressão “comunicação de massa” para a comunicação vinculada com esses recursos técnicos de comunicação. O A. julga infeliz tal expressão, por o termo “massa” induzir a uma falsa compreensão de tal fenômeno. Ele assume tal expressão no sentido da “produção institucionalizada e difusão generalizada de bens simbólicos através da fixação e transmissão de informação ou conteúdo simbólico”. O uso da mídia provoca uma reorganização do tempo e do espaço. E os indivíduos reapropriam-nos dentro do contexto de suas vidas.
O capítulo segundo estuda a mídia e sua inter-relação com o desenvolvimento das sociedades modernas. O marco teórico anteriormente elaborado permite interpretar as principais transformações em articulação com o surgimento das sociedades modernas, acentuando o desenvolvimento das instituições midiáticas, e o crescimento de novas redes de comunicação e informação. Os clássicos analisaram as transformações institucionais ocorridas já no final da Idade Média e no início da modernidade por obra e graça da passagem do feudalismo para o capitalismo e do surgimento do Estado moderno centralizador com o monopólio do uso legítimo da força. O estudos sobre as transformações ocorridas no domínio cultural, e por ele provocadas, são menos explícitos e úteis ou se restringiram ao aspecto da mentalidade. O A. orienta-os na direção dos meios de produção e circulação das formas simbólicas no mundo social, os quais se desenvolveram em ritmo acelerado desde a invenção da imprensa até o satélite. Os modelos de comunicação e interação transformaram-se de maneira profunda e irreversível com repercussão nas mudanças das dimensões institucionais das sociedades modernas, nas redes de comunicação e na sua conexão com o poder econômico e político. Estuda também as maiores transformações nas indústrias da mídia.
O capítulo terceiro contempla o advento da interação midiática. O tradutor optou pela palavra “mediada”. Creio que não foi a melhor opção, já que este termo tem forte ressonância filosófica clássica ou hegeliana. Seria melhor usar o termo “midiática”. Por isso nessa recensão usarei este termo quando no texto está a palavra mediada. Começa distinguindo três tipos de interação: 1) face a face que se dá na co-presença imediata dos participantes; 2) midiática que se faz por meio de cartas, conversas telefônicas, implicando o uso de um meio técnico (papel, fios elétricos, ondas eletromagnéticas, etc.); 3) quase midiática: refere-se às relações sociais estabelecidas pelos meios de comunicação de massa (livros, jornais, rádio, TV,etc.); as formas simbólicas são produzidas para um número indefinido de receptores potenciais e é monológica, em sentido único. Depois estuda a organização social da interação quase midiática e as esferas de produção e recepção, examinando os tipos de ação que acontecem em cada uma.
No capítulo quarto, explora-se o impacto da mídia na relação entre o público e o privado e na mudança do vínculo entre a visibilidade e o poder. Para entender-se a relação público e privado, pode-se recuar até suas origens na polis grega. O A. estuda especialmente a parte do final da Idade Média em que se constrói uma dicotomia entre poder político (público) e o domínio das atividades econômicas e das relações pessoais (privado). A partir do final do século XIX, as fronteiras entre ambos ficaram tênues. O desenvolvimento da mídia teve enorme influência na mudança dessa relação, superando a publicidade da co-presença para a midiática. Desloca a relação privado/público para a de visibilidade/invisibilidade. Tal mudança teve enorme repercussão na política, expondo os políticos a uma publicidade maior, que eles procuram administrar, mas sobre a qual não têm total domínio, sobretudo em quatro casos que lhes escapam: gafe e o acesso explosivo, a produção de um efeito contrário imprevisto, o vazamento e a corrupção.
O capítulo quinto trata da globalização da comunicação. O termo é muito discutido. Há globalização no sentido atual, segundo o A., quando ocorrem três fatores: 1. As atividades acontecem numa arena que é global ou quase isto (e não apenas regional, por exemplo); 2. as atividades são organizadas, planejadas ou coordenadas numa escala global; 3. as atividades envolvem algum grau de reciprocidade e interdependência, de modo a permitir que atividades locais situadas em diferentes partes do mundo sejam modeladas umas pelas outras. Dentro dessa concepção de globalização, estuda as etapas do fenômeno das redes de comunicação desde a comunicação postal do império romano, passando pelo telégrafo até aos satélites, tanto no aspecto tecnocientífico, quanto na organização das agências de notícias. Reavalia a teoria do imperalismo cultural. Busca uma teoria da globalização da mídia a partir de melhor intelecção da relação entre o poder simbólico e os outros poderes – econômico, político e coercitivo - e também de melhor percepção das relações entre os padrões estruturados da comunicação global e a apropriação feita nos diversos lugares.
O desenvolvimento da mídia impactou fortemente a vida diária dos indivíduos. No capítulo sexto, o A. questiona a posição comum de que com o avanço das sociedades modernas há declínio da tradição como coisa do passado. Pelo contrário, ao libertar-se dos limites do face a face da cultura pré-moderna, a tradição adquiriu maior força e extensão, enxertando-se em novos contextos e ancorando em unidades espaciais distantes. Defende, portanto, a provocante tese de que a tradição não foi destruída pela mídia, mas transformada. Deu-lhe um caráter mutável.
O capítulo sétimo analisa o impacto da mídia sobre o eu (self), seu processo de formação e sobre a maneira de vivenciar as experiências. Tal processo se torna mais reflexivo e aberto, dependendo cada vez mais dos próprios recursos para construir-se uma identidade coerente para si. Isto não tira que ele seja alimentado cada vez por materiais simbólicos midiáticos, amplamente disponíveis, enfraquecendo a conexão entre a formação e seu local. Os indivíduos têm acesso cada vez mais a conhecimentos não locais, embora apropriados em locais específicos. Criam-se novos tipos de intimidade à distância, não recíproca, diferentes da face a face. A mídia permite que se experimentem realidades que dificilmente pertenceriam à rotina de nossa vida na contramão da sociedade moderna que afasta muitas experiências de nosso cotidiano: doença, morte, loucura, etc., enclausurando as pessoas em instituições especializadas – hospitais, nosocômios, prisões. Experimenta-se na mídia o que nunca se encontrou na vida. O A. estuda o efeito de tal fenômeno na construção do self. A formação do self entrelaça-se cada vez mais com as fórmulas simbólicas midiáticas. Salienta os aspectos positivos de oferecer mais elementos para a construção do sujeito, como projeto simbólico, exigindo dele reflexividade e abertura. Há também as influências negativas: intrusão midiática de mensagens ideológicas, a dependência midiática, o efeito desorientador da sobrecarga simbólica e a absorção do self na interação quase midiática.
O último capítulo tem o sugestivo título: “A reinvenção da publicidade”. Uma primeira sugestão seria a criação de novas formas de vida pública fora da competência do Estado, mas levando em consideração a atual situação das substanciais concentrações de recursos que modelam esse universo. A midiática modificou profundamente a concepção de publicidade na política. É necessário reinventar a publicidade dentro de um contexto mais amplo de debates sobre a natureza da política e sobre o Estado, criando novas formas de vida pública fora da alçada do Estado. Supõe-se que se modifique a concepção de publicidade midiática, superando a concepção tradicional da co-presença. Estamos diante do desafio de uma renovação da política democrática e da criação de uma ética de responsabilidade global.
Livro claro, didático, de fácil leitura. O A. leva o leitor a refletir sobre temas e questões bem atuais de maneira decidida, ultrapassando posições clássicas que desconhecem o impacto midiático. É sob este ângulo que se desenvolve todo o livro. Vale a pena conferir. Traduz elementos importantes para os formadores de opinião e de pessoas, ajudando-os a administrar e inventar soluções para os desafios do processo inexorável de desenvolvimento dos meios de comunicação social. O A. é muito equilibrado, apontando os aspectos positivos e negativos de tal situação. Não deixa o leitor na inação estupefata, mas açula-o a uma atitude crítico-criativa.
J. B. Libanio
Nenhum comentário:
Postar um comentário